terça-feira, 9 de outubro de 2007

Um conto como sobremesa...

Hoje é um dia especialmente fértil. É que ainda estou quase de férias... mas volto para o trabalho médico hoje mesmo.
A idéia deste conto me rondava há um mês, mas só hoje consegui fazê-lo...


Quando a vida nos surpreende....


Quando Lumara acordou naquele dia não poderia imaginar que ele seria imensamente maior que os outros e proporcionalmente mais pesado. Ao se arrumar para deixar seu filho único de oito anos, Filipe, no colégio, vestiu sua roupa de ginástica e saiu determinada a cumprir com sucesso sua longa agenda: filho no colégio, academia, trabalho, almoço/reunião, trabalho, salão de beleza, casa e se arrumar correndo para o Congresso de Marketing, da qual era Presidente e faria a abertura.
E não esqueceu que no meio do trabalho teria de rever os slides que iria apresentar à noite. Que tinha de lembrar o ex-marido de pegar o Filipe no colégio para dormir com ele. E também que tinha de ligar para buffet, floricultura e hotel para que tudo estivesse perfeito no Congresso.
Foi com esse espírito que saia de casa:
- Vamos Filipe, já estou atrasada.
- Peraí mãe! Já to descendo.
-Você sempre me atrapalha, tem de ser mais organizado, vamos, hoje é um dia difícil, vamos , corre!!!...
Após deixar o filho no colégio o celular toca:
- Bom dia. A Senhora é Lumara que mora em Brasília, filha de Dona Adelaide Silveira?
-Sim sou eu mesma, porque?
- Ela é dona de um Fiat uno prata?
E já sem paciência - Sim, mas quem está falando, que perguntas são essas? o que aconteceu? É brincadeira? Vamos responda rápido!
- Sou policial e sinto informá-la: sua mãe morreu!!! Teve um acidente de carro aqui em Luziânia, atravessou o sinal vermelho e um ônibus a acertou. Teve morte imediata e estamos aguardando os parentes para identificar o corpo...
Não conseguiu mais falar. Desligou o celular, sentou-se no meio-fio onde estava e sem perceber se havia expectadores para sua dor, chorou copiosamente. Nada mais importava...
As cenas vieram de chofre, sem pedir licença: sua mãe ralhando com ela para comer, o passeio na pracinha que faziam na infância, a roseira delas, o seu casamento quando sua mãe lhe vestiu a roupa...quando Filipe nasceu e todas as vezes que ele esteve doente, quando Lumara não podia parar o trabalho, e sua mãe vinha lhe ajudar... e como flashs as cenas se reproduziram consecutivamente, sem intervalos para dor.
A agonia se fez imensa quando lembrou das inúmeras vezes que sua mãe solicitou que a visitasses em Luziânia, que era tão perto de Brasília; ou então deixasse que ela ficasse uns dias em sua casa para ver o neto - mas a sua agenda lotada não a permitia nada disso. Mais de seis meses que não vejo minha mãe!!! Tanto que o Filipe pediu para ir lá. Acho que ele estava advinhando. Como eu fui burra!
- Oh! Meu Deus! Porque deixei tudo isso acontecer? E agora não tenho mais ela...onde ela está? Cadê aquele sorriso doce? Onde está minha mãe?????? Como eu faria tudo diferente. Deus me livra desta dor!!! Lágrimas jorravam sem parar
O telefone toca.
Ela não consegue atender!
O chamado insiste até que Lumara responde:
- Oi!.
- Oi filha sou eu.
Susto! !!!
Era sua mãe. Como era isso? Ela estava se comunicando com ela morta? Existia espírito? Tudo isso passou por sua cabeça até ela responder: - mãe é você? Onde você está? Não morreu?
- Não filha, eu tô ligando para dizer que sua tia Joana, veio aqui, pegou meu carro escondido para flagrar seu marido que estava lhe traindo e atravessou um sinal vermelho e...
- Eu sei mãe ela morreu, o guarda me ligou achando que era a senhora. Ah! mãe que alívio que a senhora está viva. Estava desesperada sem saber o que fazer.
- Lumara, estou precisando de você, você sabe que Joana era a única irmã que me restou, estou muito abalada, me sinto sozinha, perdida...vem pra cá filha, fica no enterro comigo, por favor e... ( o pranto não permitiu continuar )
- Mãe, quando é o enterro? Amanhã né? Desculpa, estou sem condições de ir, tenho um Congresso de três dias que começa hoje. E por falar nisso já estou atrasada para resolver tudo, que tenho de resolver até a noite. Sinto muito, mãe, hoje é um dia impossível. Tentarei ir no fim de semana. Não esqueça que te amo e vou tentar estar mais juntinho da senhora à partir de agora. Beijo, tchau!
E saiu pensando que aquele incidente tomou pelo menos uma hora, de um dia desses tão tumultuado. E as lágrimas ainda lhe deixaram com uma aparência horrível
- Que horror. Mas o susto serviu para me organizar e estar mais presente na vida da minha mãe. Deve ser um aviso de Deus.
Foi quando lembrou: - vou ter que avisar a mamãe, ligo amanhã, depois do enterro, que neste fim de semana vou ter visitas em casa – amigos que vieram para o congresso e que teremos de fechar negócios - e logo depois viajo para um curso de duas semanas em São Paulo, mas quando chegar vejo um tempinho de ir lá!
E saiu, sob um sol pálido, para seguir driblando o tempo deste dia tão imensamente carregado.
09/10/2007

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