terça-feira, 7 de agosto de 2007

Um conto praiano

Este conto foi criado para uma oficina literária. A idéia era um conto ambientado na Praia de Copacabana que não constasse 100 palavras entre elas: praia, sol, Copacabana, areia, mar, oceano, ondas, calçadão, lua, mulher, chapéu, chinelo e palavras afins.
E o resultado foi este:

Reencontro


Era um fim de tarde primaveril, naquela hora do crepúsculo em que tudo adquire tons alaranjados e a água reflete tantas matizes de cores que parece a palheta de um pintor.
Heloísa segue melancólica, atravessando a Avenida Atlântica, naquele mesmo Posto Dois onde inúmeras vezes veio brincar com a filha nos fins de tarde, ao sair da casa de sua mãe, antes de ir para a sua, no Leblon.
Ao sentir seus pés naquele tapete branco, ainda morno, naquela hora do dia, sentiu uma emoção muito forte. Após vinte anos voltava àquele lugar. Demorou muito a se sentir preparada para pisar ali novamente.
Lembra que tudo tinha sido muito rápido, a notícia que sua filha, Carmem, tinha uma doença grave a pegara de surpresa. A seguir o diagnóstico de um tipo raro de Leucemia e em menos de três meses a notícia:
— Sinto muito falar...mas sua filha morreu!
Depois disso, uma tristeza lancinante, sem limites! Seguida de um mergulho num vazio que deixou várias lacunas na sua vida. Parece que sua vida entrou num redemoinho tão confusamente doloroso que pouco se lembra desta época. Não que a dor tenha sido minimizado com estes esquecimentos, não...o que aconteceu é que ela não estava naqueles dias neste mundo...
Agora, enquanto sentava na terra ainda molhada, pensou:
— Hoje, exatamente hoje, ela faria trinta anos!
E como um carinho na alma sentiu que naquele momento tinha de estar ali. Naquele mesmo lugar, onde várias vezes, Carmem fez seus castelinhos encantados que a água teimosamente desmanchava. Ela gostava de passar o dia na casa da avó só para poder ir brincar na terra macia. Ficava concentrada fazendo sua obra de arte, como hipnotizada.
— Carmem, vamos! Já está escurecendo, temos de ir.
— Mas mãe, deixa eu ficar mais um pouquinho, tô terminando o castelo mais lindo do mundo...
— Só dez minutinhos e nós vamos de qualquer jeito, entendeu garotinha? Acho que por você a gente morava aqui, né?
— Ah! eu adoro ficar aqui...espera só um minutinho, por favoooooooor...
Heloisa recorda que após uns seis longos meses, depois do enterro, recomeçou a vida; mas onde olhava, onde andava, onde resistia, parecia que estava faltando algo...se sentia como se não merecesse estar viva; era um erro a morte ter levado sua filha e não ela...
Mas como um presente, um ano após esta perda imensa, se descobriu grávida novamente e assim nasceu Mariana, que veio para ser sua grande companheira.
O sofrimento nunca cessou, mas se atenuou com a chegada de alguém que precisava de cuidados e que rapidamente se mostrou muito inteligente e brincalhona fazendo sorrir a casa inteira.
Aliás, tinha marcado com Mariana para fazer umas compras no Barra Shopping. — Já estou em cima da hora. Tenho que ir.
Quis sair, mas algo a prendia àquele lugar. Tirou a sandália e se dirigiu àquele vai vem de água azul, gelada. Ao molhar os pés sentiu um cheiro de lembrança antiga, salgada...reviveu outro Rio de Janeiro, outra Heloísa, outra filha...e chorou copiosamente.
Calçou a sandália e começou a fazer o caminho de volta.

Ainda não tinha chegado a rua quando ouviu uma gargalhada e um — tchau, mamãe – como não ouvia há séculos...
Virou-se bruscamente, como se pudesse repentinamente voltar no tempo, mas não havia ninguém. Tudo começava a escurecer, embora o reflexo lunar já começasse a ser desenhado na água.
Voltou-se para ir embora e ouviu novamente:
— Até logo, mamãe.
Desta vez ela não olhou para trás, para não perder a magia, e respondeu sorrindo:
— Até logo, filha.
E saiu pisando no chão macio, bem lentamente, e com a certeza que iria voltar ainda muitas vezes, naquele lugar, para reencontros muito especiais.


07/08/2007

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

E num espaço de beijos não podia faltar um...

O beijo que não te dei

Aquele que eu não te dei
é o que mais me consome,
O que recrio todo dia
O que mais tenho saudade

Aquele beijo que não dei
fundiu-se no espaço,
Hoje é etéreo, impalpável
Sem nunca ter existido

O beijo que não dei
aguarda o momento de ser,
de se transformar em essência
e ficar no corpo pra sempre

Ah! os beijos que ainda
não dei...

Julho/06

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Um conto!

Traição

— Você é uma vadia!
Alberto não acreditava no que acabara de falar para a sua esposa. Ele sabia que ultrapassara os limites, mas não podia retroceder. Bateu a porta com força e saiu, deixando na sala uma Lucila atordoada.
Enquanto Alberto se dirigia ao trabalho, reviveu esses traumáticos últimos dias que culminaram com este episódio. Há menos de dois meses se achava feliz com a esposa que tinha escolhido, pois mesmo após 7 anos de casado ela continuava linda, como no primeiro dia que a viu: cabelos lisos dourados e expressivos olhos grandes verdes, olhos de felina...
Ele lembrou que quando Lucila foi morar na sua vizinhança, ambos então com 15 anos, se apaixonou de imediato, no dia da mudança...embora tenha levado um ano para ter coragem de se declarar e ter sido aceito como seu namorado... e quatro anos depois como marido...
E a felicidade se tornou maior com a chegada da filha que ele tanto amava e que cada dia se tornava mais esperta. Quando ele a viu, após o nascimento, não teve dúvidas em relação ao nome, só poderia se chamar Isolda, em homenagem à heroína do romance shakesperiano, que era uma das suas paixões desde a adolescência.
Mas desde a época de namoro ele freqüentemente se perguntava o que Lucila via nele, já que sempre foi o patinho feio da escola; além disso ele não podia esquecer as palavras maternas que martelavam no seu ouvido “que ele era feio, mas era o mais inteligente” quando alguém observava sua aparência em comparação com os irmãos.
Sabia que não estava errado: — ela me trai, com certeza!
Ele notou assim que a filha começou a crescer e não apresentava nenhuma semelhança com ele. Nem o nariz grande, nem o queixo prognata, nem os olhos pequenos, nem a cor dos cabelos...nada...
Começou a observar os traços da filha; e também a esposa para descobrir com quem ela poderia estar tendo um caso, pensou no sócio, nos amigos e até no irmão mais novo, que sempre gostava de aparecer na sua casa para jantar.
Passou semanas nessa angústia, até que um dia observando o caseiro ajudando gentilmente sua esposa a plantar umas flores, viu como era um sujeito apessoado, com aqueles cabelos louros anelados
iguais aos da Isolda. Bingo! Tinha encontrado o sujeito. Não tinha dúvidas : Lucila estava tendo um caso com o Waldomiro.

Munido desta certeza Alberto chamou Lucila para o quarto e a acusou, esperando que ela contasse tudo e confirmasse suas suspeitas. Esperou até que ela reconhecesse a esperteza dele em descobrir tudo.
Mas ele não contava que ela caísse aos seus pés, dizendo que o amava, que nunca tinha olhado para outro homem e que ele estava desrespeitando-a ao caluniá-la com o caseiro.
—Ela era uma grande atriz! Pensou. A raiva aumentou:
—Eu a estou desrespeitando?
—Você não pode falar em respeito.
—Você é uma vadia!
Bem, voltamos então ao impasse inicial quando Lucila foi deixada atordoada na sala, sem entender nada.
Ela amava o marido desde quando o conheceu. Com aquele jeito tímido e atencioso ele a encantou no momento em que cansada da mudança foi pedir água ao novo vizinho.
E sentiu imediatamente que foi correspondida. Portanto quando ele a pediu em casamento ela não teve dúvidas que Alberto era o homem da sua vida.
É verdade que agora freqüentemente se sentia solitária e aí duvidava se era tão amada por ele assim. Mas sabia que é da natureza dos homens ficarem isolados, e por isso ela não estranhava quando ficava quase todas as noites sozinha, na televisão e depois por conseguinte na cama.
Mas daí a inventar uma estória que ela estava tendo um caso, ainda mais com o Waldomiro era um desrespeito sem lógica; ele a tinha humilhado e a magoado muito. Ela não o perdoaria e entre lágrimas decidiu que iria passar uns dias na casa da sua mãe. Não tinha feito nada de errado para ser uma mulher largada, mas também não iria deixar isso passar em branco,— ah! não ia não...
— E logo o Waldomiro, um empregado, um subordinado, que ela nunca tinha olhado direito. Ela não entendia aquela suspeita do marido.
Ela resolveu que iria pegar a filha imediatamente e ir para casa da sua mãe. Mas não ficou tão resoluta quando encontrou o Waldomiro brincando com sua filha.
Sentou na varanda e começou a observar aquele belo homem sempre tão gentil com ela e pronto para atender todos os caprichos da Isolda. Começou a observar aqueles braços fortes, aquelas pernas musculosas; e se perdeu em devaneios. Foi quando Waldomiro lhe voltou o olhar e sorriu, de uma maneira diferente, ela sabia...
Um ano depois desta cena, estamos nesta mesma varanda observando um Alberto emocionado segurando o bebê William nos braços, com alegria redobrada por não ter dúvidas que este sim era seu filho, com seus mesmos cabelos pretos.
E a mãe, Lucila, também olha para o filho com a maior felicidade, porque o filho é a memória viva dos maravilhosos momentos que viveu com o Waldomiro.

26/04/2007

Mais prosa!

Esse conto é "fresquinho", terminei ontem à noite.

Vou morar em Paris!

Sônia estava decidida, desde pequena, a morar em Paris e iria até as últimas conseqüências para realizar seu sonho.
Tudo havia começado há quinze , quando ela assistiu um filme que se passava na França e tomou a decisão de um dia viver lá. O filme era em preto branco, e o título e os atores já se perderam no tempo; mas a imagem de uma moça linda vestida de branco, andando por aquelas avenidas largas, pela torre imensa e parando no Rio Sena para se encontrar com seu amor, ficaram gravadas por toda uma eternidade.
Sônia, então com doze anos, perguntou:
— Mãe, que lugar é esse?
— Acho que é Paris, minha filha...é, é Paris.
— Pois é lá que eu vou morar quando crescer!
— Deixa de bobagem Soninha, onde já se viu filha de pobre, morando neste fim de mundo do Piauí, ir para Paris?
— Mas mãe, tenho certeza que vou morar lá...
— Tu tá ficando besta menina! Deve de ser de tanto assistir televisão. Vou começar a te proibir de assistir esse monte de filme, que só faz por caraminhola nesta cabeça oca. Vai botar água no fogo para fazer o café e vê se assim pára de falar besteira...
Sônia resolveu que não ia falar disto com mais ninguém até o dia da sua viagem. Aí sim todo mundo teria uma surpresa.
Ela se tornou em pouco tempo uma moça linda, olhos grandes e expressivos, castanhos claros, olhos de mel, com cabelos aloirados ligeiramente anelados, lábios grossos, voz rouca e um rebolado de chamar atenção por onde andava.
Nem ela deixou de usar isso para atrair todos os olhares masculinos, que passavam por perto, e nem lhe faltou uma legião de fãs interessados em passar as mãos nos seus atributos. E no fim de um namoro de dois anos com o filho do vereador local, ela estava grávida de cinco meses.
O noivo foi fazer medicina na capital e nunca mais foi visto por aquelas bandas. E a “embuchada” teve de agüentar a ira da família e o falatório de toda a população.
Foi aí que ela teve certeza que não pertencia aquele lugar. E a cada humilhação que passava, após diminuir o impacto inicial, enxugava as lágrimas e saia sorrindo, pensando na satisfação que iria sentir quando fosse morar na França.
E aquilo foi suficiente para enfrentar as brigas familiares e a hostilidade dos outros. E quando Matheus nasceu tudo ficou mais tranquilo na sua casa. A cidade tirou ela da berlinda para colocar a filha do seu Zé, do açougue, que tinha ido para capital para ser prostituta. E alguns vizinhos até voltaram a falar com ela.
Ela resolveu por seu plano em ação e se ofereceu para fazer faxina na casa de uma francesa idosa que viera morar no Brasil , em troca de aprender francês. Marie, seu nome, era viúva e viu com bons olhos o oferecimento da moça. Resolveu ensiná-la.
Durante um tempo aconteceram encontros das duas todas as sextas feiras e enquanto a casa estava sempre limpa ela conseguiu dominar o básico do francês. Além de aprender a escrever cartas e ouvir músicas francesas.
E por ser uma profissional rápida, asseada e educada Sônia conseguiu trabalhar em várias casa de família. E sua mãe, Dalva, cuidava do Matheus para ela trabalhar.
— Mãe, queria lhe pedir uma coisa.
— Fala filha.
— É que eu queria passar uns tempos em Teresina. Lá pagam bem e vou conseguir ganhar um dinheirinho melhor
— Mas filha, e o Matheus?
— Pensei em deixar com a senhora um tempo, depois eu pego ele. No máximo seis meses.
— Dá muito trabalho...mas vou pensar...
E depois de um esforço diário e contínuo de dois meses, enfim, Sôninha foi para capital deixando o filho com a mãe.
Comprovou o que as amigas falavam, lá ganhava mais dinheiro com faxina sim. Ficou deslumbrada com isso até o fim do mês. Quando teve que pagar aluguel, luz, água e o crediário de roupas que comprou por conta, caiu a ficha!
— Não dá para viver assim — vivia devendo e, no final de seis meses, cedeu à pressão das amigas e foi vender o corpo que dava mais dinheiro que o outro trabalho.
Ela não se importava com quantos eram, que rosto tinham e como a tratavam. Fazia tudo maquinalmente
— Oi inicial, com sorriso - tirava as roupas, perguntava a preferência, partia para a ação e tchau.
Desta maneira mesmo. Sem envolvimento. Sem uma reclamação.
Logo ela se tornou a preferida da casa e cada vez foi acumulando mais dinheiro para sua viagem.
É, ela continuava sonhando com Paris e era nisso que pensava com cada cliente que entrava.
— Com este dou mais um passo na viagem - e ia em frente...
Não quis mais saber do filho. Tinha vergonha. Mandava dinheiro todo mês e no natal e aniversário até presente. Mas não o viu mais. Nem os pais que, ela sabia, estavam desgostosos.
Ela seguia sua estrada para Paris diariamente, sem escalas.
Após quatro anos de trabalho árduo ela comprou passagem — Só de ida!, tirou passaporte, pegou todo seu dinheiro, que dava para viver uns seis meses e fugiu de todos. Sem aviso e sem despedidas.
Chegou em Paris num dia de sol claro do mês de junho. Deixou as malas num hotelzinho barato. E como não queria perder tempo, vestiu um vestido branco- igual a atriz do filme – e foi conhecer a avenida da sua infância.
Estava deslumbrada com as ruas, com os cafés do fim de tarde (repletos de fregueses) e aquela linguagem estranha que soava como música à sua alma. Sentiu-se a mocinha do filme e começou a sorrir enquanto atravessava a rua em direção ao Rio Sena. Quase podia ouvir a voz de um homem maravilhoso que deveria esperá-la do outro lado, igual ao filme...
Sabia que era vitoriosa, que tinha alcançado seu sonho. Naquele êxtase de felicidade fechou os olhos para não esquecer daquele momento nunca mais...
E foi assim que encontraram seu corpo na rua, sorrindo para sempre...

31.07.2007

Como disse antes as poesias me desnudam...

Considero este o meu melhor poema e foi criado na primeira noite do Congresso Brasileiro de Poesia, realizado em Bento Gonçalves, no ano passado. Estava no Hotel Vinocap, sozinha - minha colega de quarto ainda não havia chegado! - e sem conseguir dormir a "poesia-retrato" debruçou-se inteira sobre mim...

PEQUENO ÓBITO

Hoje,
Comecei minha morte
neste quarto de hotel

Mastigando nós
recrio cadáveres
que gozavam felizes...
Degusto roupas entrelaçadas
e carinhos despenteados

Os beijos e risos
que habitaram o ventilador do teto
Parados
Anestesiam minha língua
e se prendendo à faringe
sutilmente me sufocam

Na cena não digerida
o sangue tinto corria pelo pano branco
que o matizava
como um artista louco
que aleatoriamente
expressa seus sentimentos
numa tela vazia

Tento respirar as tintas da parede
sem sucesso
Busco um abraço invisível
que me massageie o peito
mas só a fisionomia abjeta se reflete
Grito em silêncio a minha dor
e ofegante
varro os cacos de vidro
Paro, perplexa,
pois não existem lábios
Para a boca-a-boca

Meu corpo lívido ressurge
num palimpsesto
Deto-me!
Abro uma garrafa de tannat
Sorvo a taça
cheia de lágrimas
e aromas
E jazo horas eternas...

Respiro profundamente
Contenho meu pequeno óbito
E saio no frio
Sob um sol pálido
Após a chuva infernal

01 p/ 02/10/2006